Das entranhas da terra ao ponto mais alto de Portugal


Acordar. Pegar no saxofone. Descer a uma gruta. Criar um momento de improvisação único e irrepetível. Foi este o ritual seguido por Luís Senra no último mês, todos os sábados de manhã, na ilha do Pico.

Numa residência artística integrada no Montanha Pico Festival, produzido pela irrequieta MiratecArts, o saxofonista micaelense desafiou a acústica imprevisível das cavidades vulcânicas procurando uma simbiose entre a música e a natureza.

A experiência passou pela Gruta da Agostinha, pela Furna Vermelha, pela Furna de Frei Matias e pela Gruta do Furtado. Com maior ou menor dificuldade, todas apresentaram desafios diferentes, com o ingrediente de aventura a estar sempre presente na entrada e no percurso até ser encontrado o “palco” natural.

“Há algo no subsolo, longe da luz da superfície, que nos atrai e nos faz ter vontade de desafiar o que ainda hoje é desconhecido e desconfortável”, explica Luís Senra, acrescentando que “descer às cavidades vulcânicas é também descer fundo em direção à nossa essência”.

Não é a primeira vez que o músico micaelense é desafiado pela ilha do Pico. Se agora desceu às profundezas da terra, em 2017 foi exatamente o contrário: subiu ao ponto mais alto de Portugal, a 2351 metros de altitude.

Luís Senra é um saxofonista micaelense, natural de Rabo de Peixe, que se tem dedicado principalmente à improvisação como forma de explorar as infinitas possibilidades de interação entre o som, a natureza e o público.

Para perceber melhor o que aconteceu em cada uma das cavidades vulcânicas e conhecer o olhar peculiar de Luís Senra sobre cada uma das experiências, deixo abaixo o testemunho do músico em discurso direto.

A experiência de Luís Senra - 2 - Austéja Liu

Gruta da Agostinha: Foi como andar por uma imponente e ancestral cidade subterrânea de largos e altos túneis, diferentes aberturas e possibilidades de caminhos e vestígios de carvão e barro pertencente a quem lá ia desesperadamente coletar água. Um anfiteatro natural onde foi possível apreciar um já raro público em absoluto silêncio e um coro de gotas de água que resultou numa melodia confortante e gentil, embrulhada em audíveis sopros de ar quente, que ligaram a luz no meio da escuridão.

Furna Vermelha: À entrada, um labirinto de fetos, um piso enlameado que engolia tudo, uma descida vertical em escalada e tapetes de lava vermelha. A “luz de palco” vinha de uma abertura superior e tornou-se enorme desconforto – ou não estivéssemos no subsolo – resultando em linhas sonoras graves e cheias embora desconexas, intercaladas de imponentes harmónicos e sons sobrepostos que se “atropelavam” na ânsia de sair em direção à luz.

Furna de Frei Matias: Materializou o equilíbrio entre luz e escuridão. Um escuro túnel de lava atravessado por poços de luz e envolto no mistério da lenda de um eremita que ali se terá refugiado e vivido em absoluta solidão. No interior chovia tanto ou mais do que lá fora. Tudo parecia leve – talvez com a ajuda de uma corrente de ar que atravessava todo o tubo lávico, passava por nós e levava tudo – e o respirar a base de tudo, originando simples e fluídas melodias que balançavam e desapareciam com o vento. 

Gruta do Furtado: O acesso foi através de um buraco estreito de descida quase vertical em direção às entranhas da Terra. Um impressionante túnel lávico com uma confortante ausência de luz e um silêncio da cor das suas paredes revestidas de milhares de bactérias douradas. O som surgiu em constante clímax de vozes e gemidos misturados com notas ruidosas e ásperas de harmónicos e vocalizes, sempre em crescendo em direção a um abrupto silêncio profundo e culminando numa melodia aconchegante, confortante e que embalava.

A experiência de Luís Senra - 1 - Austéja Liu

////

Fotografias: © Austéja Liu

+ There are no comments

Add yours