Tremor: o festival que traz o mundo a Ponta Delgada
Os picos da cidade perdida, onde o mar, o céu e a terra se tocam, onde o homem e a natureza coabitam em mútuo respeito. Lagoas mil e ribeiros de água límpida, serras e pastagens de perder a vista, malhadas por simpáticas vacas e envoltas na sombria bruma. Águas ferrosas e vulcões que da terra exalam, mostrando a sua infindável força perante a impotente presença do Homem. Açores – o Tremor é também um pouco de tudo isso, muito mais que música, é uma região que abre o seu coração, é a descoberta do paraíso atlântico. “You will soon discover how trully fortunate you really are”, ouviu-se a dada altura. Se já não soubermos quão afortunados somos, pouco mais há a fazer.
(c) Tremor / Nuno Gervásio
Durante toda a semana o Tremor trouxe viagens secretas, concertos fascinantes. Houve uma electrónica viciante em banhos férreos, um rock de bigode onde se deviam marcam golos, música do mar por entre ofícios de outros tempos. Sem secretismos também deu para um Zeca Medeiros inesquecível na Igreja do Colégio, concertos brilhantes no Arco 8 e um mundo de obscuridade no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas. Só agora estava Ponta Delgada pronta para se abrir para mundo, para dar as suas igrejas, cafés, ateneus, auditórios e salões de baile – “o dia mais longo do ano” voltava à maior cidade dos Açores.
Ao subir aqueles degraus, largos e altos sob um enorme pé direito, era impossível não soltar um sorriso – uma antiga banheira de loiça, cheia de gelo, fazia de bar de serviço. Era ali que se pedia a primeira Munich do dia. Ao fundo do corredor, no último quarto do andar estava um aglomerado de gente, uns de pé, outros sentados. Ali vibrava-se com as sobreposições do violino de Sara Fontán, auxiliada por uma bateria de pedais e geringonças irreconhecíveis ao olho comum. A lenta construção da sua música, num constante crescendo, faz também crescer a intensidade com que o público a vê. Sozinha, sem qualquer dificuldade, Sara conseguiu prender todo aquele primeiro andar do Louvre Micaelense, naquele que era apenas um aperitivo para o que o dia ainda reservava.
Do Louvre para o Auditório Luís de Camões, não sem antes dar um saltinho ao Cantinho dos Anjos, onde os surpreendentes Spank Lord partiram tudo com o seu Heavy Rock extremamente melódico e agradável a qualquer amante de uma boa guitarrada. No palco do auditório criançada imensa, conduzidas por outras duas crianças mas com idade para ter juízo, os ZÁ! Com a ajuda do saxofone de Luís Senra, o duo catalão tinha a divertida tarefa de pautar o concerto da Escola de Música de Rabo de Peixe – escusado será dizer que este foi o concerto mais divertido do nosso Tremor, com a rapaziada genuinamente feliz e o público genuinamente maravilhado. No final até deu para levar a orquestra de palmo e meio para a escadaria da Igreja da Graça, no Largo de Camões.
Um pequeno desvio levou-nos aonde já muita gente se casou e baptizou. O Solar da Graça serviu de local de lançamento para uma viagem a outro mundo com o rock psicadélico de Black Mountain. Uma das grandes bandas presentes no Tremor nem por sombras vacilou, com os seus synths hipnóticos, a sua bateria frenética e as suas profundas vozes – impossível ficar indiferente.
(c) Tremor / Renato Cruz Santos
De regresso ao Auditório Luís de Camões, desta vez a rebentar pelas costuras – “estão com sorte, já são dos últimos a entrar”, dizia o simpático rapaz à porta. A grande lotação do auditório não foi suficiente para receber aquele que seria um dos maiores nomes da terceira edição do Tremor. Bonnie ‘Prince’ Billy, sentado ao centro do palco com a sua fiel guitarra, fazia-se acompanhar pelos Bitchin’ Bajas, espalhados pelo chão do palco com seus instrumentos de sopro, piano e outros instrumentos não tanto ortodoxos. No meio de uma actuação perfeita, a profundidade daqueles acordes, da voz e do olhar fixo de Billy tornava-se arrebatadora, deixava-nos imóveis, petrificados. Incrivelmente, na hora da despedida já a sala estava vazia, com a incessante busca do próximo palco. Nunca a ironia assentou tão bem na voz de Bonnie ‘Prince’ Billy – “You will soon discover how trully fortunate you really are”.
A dada hora, todas as tropas reuniram no quartel-general, o Coliseu Micaelense. Aqui, na abertura do fecho das hostilidades, os Capitão Fausto fizeram questão de por toda a gente a dançar, nem que “a casa estivesse a arder”. O seu rock descomplicado, directo e cheio de energia é verdadeiramente contagiante – era mesmo impossível não se divertir. Seguiam-se os PAUS, a sua bateria siamesa e um Coliseu a vir a baixo. Eles não são só bateria – nem por sombras – mas a força daquela batida é algo de outro mundo, move até o mais sereno mortal. A impulsionar tudo aquilo há uma linha de baixo formidável, um sintetizador omnipresente e vozes em uníssono como que a cantar palavras de ordem. A hora já ia longa mas ainda havia Dan Deacon com a sua mesa de mistura e a sua inacreditável energia, auxiliada por uma bateria analógica, e transformou-se a pista do coliseu num verdadeiro concurso de dança.
Muito mais do que quem por cá aparece e vive o festival da sua vida, nós somos verdadeiramente afortunados por ter um Tremor que nos traz o mundo, este mundo que muitas vezes até está ao mesmo aqui ao nosso lado, aos nossos pés, mas insistimos em querer olhar lá ao longe. Um Tremor que faz acontecer, que conta estórias, que nos abre a mente, um Tremor que nos dá vida.
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Foto de Destaque: (c) Tremor / Vera Marmelo
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