Tremor afirma-se como a festa da cultura de Ponta Delgada
A “cadência musicada do ladrar de cães dos criadores de gado” e a “pouco comum concentração de bass nas águas da Ferraria” faziam prever um acontecimento extraordinário. Extraordinário é claramente um eufemismo para o que se viveu no épico dia vinte e oito de Março. Um verdadeiro Tremor abalou o centro histórico de Ponta Delgada. Workshops, gastronomia, artesanato contemporâneo, cinema e até autocarros misteriosos fizeram parte da festa da cultura de Ponta Delgada, mas a música foi mesmo a jóia da coroa. Vinte e quatro artistas tomaram de assalto palcos e espaços menos prováveis do centro histórico e levaram centenas de pessoas às ruas. As ruas encheram-se, a cidade ganhou vida e o Meia de Rock esteve lá!
Foto: Manuel Silva
A doce voz, a subtileza e os sons melódicos e agradáveis de Lucrecia Dalt ficaram no estúdio em Berlim. No Louvre Micaelense apareceu uma Lucrecia reinventada, munida dos mais variados sintetizadores e instrumentos pouco convencionais, numa electrónica minimalista e experimental a fazer tremer o mais forte dos festivaleiros. Por entre vitrines vazias, onde outrora pousavam as fazendas de Duarte Cardoso, viu-se a singular Lucrecia executar um conjunto de sons aparentemente desordenados mas estranhamente eficazes, que agarraram quem por lá passou naquela demasiado curta meia hora.
Foto: Joana Camilo
Três paralelas à frente, foi no salão de baile do Ateneu Comercial que a pop veranil de Duquesa fez-se ouvir. Nuno Rodrigues trouxe os amigos e fez a festa! O projecto a solo do vocalista dos Glockenwise veio trazer uma aragem leve e divertida ao Tremor, mas engane-se quem pense que a leveza de Duquesa significa menor brilhantismo. A simplicidade é o trunfo do tão talentoso jovem de raízes barcelenses que faz da guitarra a sua vida e aproveita-se de uma sonoridade limpa para atingir todo o mundo e levar-nos a soltar um sorriso, a dar aquele passinho de dança.
Mas a festa da música em Ponta Delgada não se fez apenas de viajantes transatlânticos. Da costa norte de S. Miguel vieram os Broad Beans e trouxeram o seu “Broadbeanealismo” todo. É de facto difícil descrever o som dos tão talentosos jovens naturais da Ribeira Grande, mas pode-se dizer que é divertido, é funky, tem groove e inspira felicidade. Como se isso não bastasse, na distinta cave do HC Bar & Lounge pôde-se assistir a música perfeitamente executada, com uma linha de baixo bem marcada, uma percussão irrepreensível, cordas fantásticas e uma singular voz.
Foto: Manuel Silva
Por entre camisas, calças e fatos desde 89€ havia um homem de T-shirt às riscas, com um cabelo desajeitado, e agarrado a uma espécie de mini teclado mágico. Emperor X trouxe todo o seu talento de Los Angeles para “O Símbolo da Moda Masculina”, a Londrina. A energia, a magia de Chad Matheny é contagiante. A música é simples, eficaz, e no seu teclado mágico ou apenas com a sua guitarra, o sentido de humor é denominador comum. A interacção com o público é fantástica, o resultado final é de chorar por mais. Concerto único, num espaço também único, onde houve tempo para Chad tocar uma música feita no momento, usando as suas palavras de agradecimento ao proprietário do pronto-a-vestir – “Obrigado, Carlos”. Essa é a magia de Emperor X, vale tudo!
O blues, o verdadeiro blues, não chegou ao tremor por mão de nenhum norte americano. António Alves jogava em casa e realmente não veio do outro lado do atlântico, mas bem que poderia ter vindo. Na calçada da Refinaria já se ouvia o tom sofrido, de coração partido de King John, mas era por entre as arcadas da sala que se via o verdadeiro Rei. Execução perfeita, com a companhia de bateria e um terceiro elemento a dar uma mãozinha nas cordas, o músico micaelense deu um show no tremor, com casa cheia a aplaudir.
Foto: Sara Pinheiro
O palco do Teatro Micaelense transformou-se numa autêntica selva, viva, com vegetação exótica de médio porte por toda a parte. Completamente integrados neste habitat, emergiam músicos e instrumentos. Muitos músicos… São precisas nove almas para nos levar neste safari ao nosso imaginário, e nenhuma delas se sentiu a mais. Sintetizadores, sopros, vocais, percussão e um Bruno Pernadas multi-instrumentista, passando das teclas para as cordas, produziram uma amálgama de diferentes sons, aparentemente desconexos, mas com um resultado final arrebatador, capaz de nos levar de viagem neste safari musical.
Foto: Direitos reservados
Foi sob o olhar de santos e anjos que Medeiros/Lucas juntaram a tradição à inovação. 30 anos separam Carlos Medeiros de Pedro Lucas, mas talvez seja este o segredo do seu sucesso. A insularidade está muito presente nos textos adoptados pelo duo, e a serena voz de Medeiros aliada à guitarra eléctrica, teclas, percussão e sensibilidade de Lucas “troca as voltas às tradições atlânticas”. Toda esta mestria enquadrada pela magnífica Igreja do Colégio, iluminada a preceito, deixaram qualquer um de boca aberta. Valeu pela música, valeu pelo espaço, valeu pela experiência única.
Foto: Direitos reservados
Era o virar do dia e a acção foi ter ao Coliseu Micaelense. Quem esperava ver Moullinex atrás do deck, enganou-se redondamente. O homem trouxe a sua banda, vestida com robes personalizados, e tocou com instrumentos e sem recurso a samples, mas nem por isso o povo dançou menos. Muita disco se tocou no Coliseu e Luís Clara Gomes mostrou realmente o seu génio. Execução irrepreensível e uma nova roupagem para os sucessos e os novos registos do músico Lisboeta. Esta é a magia de Moullinex no palco – permite não só ver e ouvir, mas redescobrir o artista. Moullinex foi tão extraordinário que até a hora avançou!
Foto: Direitos reservados
Já com a “hora nova”, a paragem era no Solar da Graça. Por entre o muito público já estabelecido emergiram dois jovens singulares a tocar trompete e a utilizar as rústicas traves de madeira como instrumento de percussão. A original e forte entrada dos Za! foi apenas o inicio de uma actuação enérgica, divertida, sem regras e com muito movimento. Com recurso aos mais variados instrumentos, com a bateria e a batida sempre essenciais, os jovens barcelonenses trouxeram ao Solar da Graça sons que oscilam entre o african beat e o free jazz. Mais importante ainda, trouxeram ao Solar da Graça a verdadeira festa!
Com um Tremor tão rico era difícil, muito difícil, ter uma actuação que se sobrepusesse a todas as outras, mas a mestria dos Sensible Soccers destacou-se. Foi por pouco, mas a verdade é que se destacou. Mistura de sons electrónicos subtis, com uma linha de baixo marcada e uma guitarra mágica, num crescendo magnífico – o mais pequeno resumo técnico possível. Mas o quarteto é muito mais que técnica, muito mais que sintetizadores e cordas. Sensible Soccers são a emoção em forma de música. Vê-los é acessório, ouvi-los é essencial, fechar os olhos e deixar-nos levar neste som único é inevitável. Som que tem a capacidade de transportar-nos, de guiar-nos numa viagem sem fim à vista, ao mais profundo dos nossos sonhos.
O Tremor não é só mais um festival… É muito mais que música, é a descoberta da cidade, as pessoas, os espaços únicos, a arte, a cultura. É a experiência que marca. Com o Tremor ganharam os açorianos, ganhou a música, ganhou Ponta Delgada – ganhámos todos!
Foto de Destaque: Paulo Prata
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