António Pedro Lopes volta a chamar “casa” a Ponta Delgada


Saiu de São Miguel aos 16 anos com o objectivo de estudar teatro musical nos Estados Unidos durante um ano, mas a sua “sede de mundo” fez com que só se voltasse a aproximar dos Açores, muito mais tarde do que o previsto.

Nos anos que decorreram entre a partida à descoberta do mundo e o regresso a casa, António Pedro Lopes formou-se em Teatro e Dança Contemporânea, trabalhou como performer e criou espetáculos em Portugal e no estrangeiro.

Aos vinte anos “roda o mundo” com o coreógrafo francês Jérôme Bel, e depois dá os primeiros passos no mundo da produção cultural e organização de eventos no domínio das artes performativas.

“Durante muitos anos fui nómada extremo, não dormia mais de três semanas na mesma cama e de um dia para o outro estava na Ásia, nos Estados Unidos, na Europa Central ou no Brasil. Comecei a sentir-me errante, faltavam-me testemunhas, e custava-me não poder ver os outros a crescerem e os lugares mudarem, e desse modo não participar da vida de uma comunidade. Decidi reformular tudo e diminuir a ação do ponto de vista geográfico”. Uma ação geográfica que, embora tenha sido reduzida, continua a obrigar a uma travessia do Atlântico, entre Lisboa e Rio de Janeiro, com paragem em Ponta Delgada, que voltou a ostentar o epíteto de “casa”.

A reaproximação a casa começa aos 28 anos, primeiro para apresentar um espetáculo no Teatro Micaelense, depois para participar na terceira edição do festival de arte pública de Ponta Delgada – Walk&Talk – e para colaborar com a agenda cultural Yuzin.

A ligação de António Pedro Lopes a estes projectos relacionados com cultura alternativa que nos últimos anos têm surgido em Ponta Delgada era já uma realidade, quando, em novembro de 2013, “de uma toalha de mesa toda rabiscada”, na companhia de Luís Banrezes, sai um projecto que – assume o próprio – mudaria a sua relação com a cidade: o festial Tremor. Um projecto que – dizemos nós – mudou a própria cidade.

António Pedro Lopes não é “só” actor, dançarino, performer, e produtor. Também há espaço para a escrita de canções e para as levar ao palco na sua própria voz, ao lado de Gui Garrido. A longa relação entre os dois deu o mote para o nome da banda: Melhor Amigo.

“Eu e o Gui conhecemo-nos há 10 anos. Estudamos juntos, vivemos na mesma casa, viajámos para muitos lados e fizemos espetáculos e projetos juntos aqui e acolá. Notámos que em quase tudo o que nos unia residia o fantasma da música. Ele já tinha tocado em outras bandas e eu cantava em tudo o que era espectáculo onde me metia. Depois de muitos desencontros e viagens, encontrámo-nos a viver os dois em Lisboa e a banda foi a forma de regar esta amizade e levá-la mais longe”.

O Melhor Amigo já se fez ouvir em Portugal, Espanha e França. A vinda aos Açores ainda não aconteceu, mas já há um convite. “Temos só que preparar-nos para parar e  fazer uma ‘tour’ pelo país que inclua vir cá. Eu espero que o inverno faça isso acontecer”.

|| ENTREVISTA COMPLETA ||

Com o aparecimento de eventos dedicados à cultura alternativa em Ponta Delgada, como o Walk&Talk e o Tremor, começamos também a ouvir o teu nome, enquanto artista e dinamizador cultural, mas antes já tinhas andado pelo mundo. Como é que sais, e o que é que te fez voltar a esta ilha?

Saio com 16 anos, com sede de mundo, especificamente para um ano de estudos em Teatro Musical nos Estados Unidos. Depois, licencio-me em Teatro enquanto me formo profissionalmente em Dança Contemporânea. Trabalho mais de 10 anos como performer para coreógrafos e encenadores, e crio espetáculos em nome próprio e em colaboração com outros em Portugal e no estrangeiro – que ainda continuo a fazer. Aos 20 anos, rodo o mundo com o coreógrafo francês Jérôme Bel, e em 2008 começo a mexer em produção cultural e a fazer curadoria e organização de eventos no domínio das artes performativas. Durante muitos anos fui nómada extremo, não dormia mais de três semanas na mesma cama, e de um dia para o outro estava na Ásia, nos Estados Unidos, na Europa Central ou no Brasil. Comecei a sentir-me errante, faltavam-me testemunhas, e custava-me não poder ver os outros a crescerem e os lugares mudarem, e desse modo não participar da vida de uma comunidade. Decidi reformular tudo e diminuir a ação do ponto de vista geográfico. Começo a reaproximar-me de São Miguel aos 28 anos, primeiro para apresentar um espetáculo no Teatro Micaelense, depois para criar um projeto contextual comunitário com 10 habitantes de Ponta Delgada na terceira edição do Festival Walk&Talk, e até como colaborador da Yuzin – Agenda Cultural. Um dia, em novembro de 2013, reúno-me com o ‘Kitas’ [Luís Banrezes] e nessa noite, de uma toalha de mesa toda rabiscada sai um projeto que mudaria toda a relação que tenho com Ponta Delgada. Refiro-me ao Tremor. Juntamo-nos à Lovers&Lollypops e a meia cidade de Ponta Delgada, e o resto está por aí. Voltei a chamar Ponta Delgada de casa, ainda que viva ainda também no Rio de Janeiro e em Lisboa, tendo, desse modo, passado de nómada extremo a ‘compositor triangular’. São Miguel tornou-se, para mim, uma zona de trabalho e um palco de potência. Notei que o território carecia de projetos e propositores culturais que criem situações, experiências e lugares com  identidade regional e o mundo lá dentro. Com esse motor, voltar tornou-se inevitável, porque sinto que posso colaborar construtivamente.

Depois de todos esses anos em viagem permanente, quais foram as principais diferenças – para melhor e para pior – que encontraste em São Miguel?

Para melhor, surgiram algumas bombas de oxigénio. Projetos claros em que consigo ler as intenções e a pertinência: o Ateneu Criativo – que entretanto fechou, e cujo edifício está à venda – da CRACA Associação Cultural, o Festival Walk&Talk, a YUZIN- Agenda Cultural… Acho maravilhoso o investimento da Catarina Ferreira no centro histórico da cidade e a qualidade e singularidade desses lugares. Acho que a cidade precisa disso: de lugares com vinco, história, cunho. Os acessos ao arquipélago mudaram e será difícil medir o seu impacto apenas meio ano depois dessa alteração, mas só posso considerar positivo a possibilidade de ir e vir mais vezes. Fui vendo a progressiva desertificação do centro de Ponta Delgada, a falência do seu centro histórico, e a cidade virar um fantasma cinzento. A cada regresso faço uma espécie de passeio ‘raio x’ e com os anos fui desmoralizando, afinal de contas, ainda que a internet esteja aí, foi nesta cidade que juntei os pés e saltei para o mundo. Custou-me assistir ao despropósito do centro como lugar de encontro da vida pública. Mas hoje há indícios de mudança, Ponta Delgada está acordada, reativa e viva, há novos lugares, novos projetos a bulir atrás de portas. Muitas das pessoas que saíram para se formar estão a regressar, e aos poucos começam a devolver à terra renovação e estímulo. Fotógrafos, músicos, artistas plásticos e performativos, permacultores, cozinheiros, gestores culturais, comunicadores, novos especialistas, etc., estão aí, e aos poucos assiste-se ao rejuvenescimento do tecido social, o que me parece vital. Também gosto de sentir que aqui moram muitas comunidades estrangeiras, de observar como se integram, vivem e fazem desta terra, a sua casa, e a tornam um lugar com mundo. Depois, o Arco 8 está com uma programação super ativa, temos um Centro de Artes Contemporâneas e um grupo de teatro – “A Pontilha” – a tomar conta do Teatro da Ribeira Grande. Não falta potência em São Miguel, falta só visão para as coisas, os lugares e os projetos com pés e cabeça. Temos cá tudo, incluindo as pessoas com o mérito, a formação e a ética certa. Para pior: acho sempre decepcionante a ideia de capitalização da natureza como sinónimo de exclusividade e preservação. Há muito cimento erguido na ilha verde. Há muito caminho e instalação bonita para turista ver. Às vezes, falta-me o lado mais crú, selvagem, poeirento da natureza monumental.  Não é nostalgia. A paisagem mudou muito, as maravilhas da natureza tornaram-se mini complexos turísticos, e às vezes o seu aproveitamento é feito à imagem de maus exemplos e más práticas. Isto não é a Madeira! Isto não é o Algarve! É bom não ser para todos, é bom ser exclusivo e específico para o público deste ‘pacote’. Acho que falta definir quem é esse público alvo, antes de se começar, lentamente, a destruir, ao querer meter bonitinho. Parece-me importante dar a voz aos mais jovens, que carregam projetos, ideias claras e especialização. O poder continua muito vinculado a vozes partidárias e o acesso algo fechado a algumas famílias. É urgente um projeto cultural da parte do Governo Regional para a região, e uma articulação entre política e vida pública, papel e acontecimento. Importa articular um projeto de cultura que articule Educação, Arte e Cidadania, além da ideia de negócio assente em ‘evento cheio ou figura famosa’ e cultura televisiva. Estamos muito entre o entretenimento e um elitismo de nicho. Acho que o melhor é haver muito para desbravar.

Além da dança e do teatro, expressas-te também através da escrita e da música. Quem é o Melhor Amigo e que espaço é que ocupa na tua vida?

O Melhor Amigo é o Gui Garrido. Como todas as melhores amizades é um terreno fértil e pantanoso porque mistura todas as dimensões da vida. Eu e o Gui conhecemo-nos há 10 anos. Estudamos juntos, vivemos na mesma casa, viajamos para muitos lados e fizemos espetáculos e projetos juntos aqui e acolá. Notamos que em quase tudo o que nos unia residia o fantasma da música. Ele já tinha tocado em outras bandas, e eu cantava em tudo o que era espectáculo onde me metia. Depois de muitos desencontros e viagens, encontramo-nos a viver os dois em Lisboa, e a banda foi a forma de regar esta amizade e levá-la mais longe. Em dois anos, experimentamos tocar e compor e disparávamos para todos os lados. Hoje, depois de concertos por Portugal Continental, Espanha e França, muitas visitas a estúdio e uns retiros na Costa da Caparica começamos a entender melhor a que é que soa o Melhor Amigo. Na minha vida, considero-o um espaço de transformação constante, um jogo de composição de palavra, som e imagem, e uma forma de me colocar, ver e dar ar ao mundo. É também uma forma de trabalhar com amigos, envolve-los de todas as formas possíveis. É uma capa de afectos cujas canções falam por si e muito rapidamente resignificam o que pode haver de ‘fofinho’ no nome do projeto. Costumo dizer que canto com o coração na mão e com a palavra de pulso aberto, e o Gui, que é um animal de palco, está ali multi-instrumentista de corpo todo. Dizem-nos que em concerto revelamo-nos um bicho. Há algo inclassificável e de procura no que fazemos, não nos conseguimos enfiar numa caixa, filiação ou tendência, mas para já vamos continuando e traçando metas. Primeiro as canções, depois o EP, depois a sua criação visual nos vídeos, os concertos, e aos poucos ir fazendo amigos músicos novos para experimentar coisas. O nosso “Dá-me a Mão” diz: “E vamos sem saber onde dar/ E vamos sem nunca chegar/ E vamos nós vamos só vamos” e acho que isso diz muito sobre nós, o nosso presente e o futuro.

O Gui Garrido tocou na edição do Tremor deste ano, mas julgo que nunca ouvimos o Melhor Amigo nos Açores. Alguma previsão para quando isto poderá acontecer?

Acho que nunca vão ver o Melhor Amigo a tocar no Tremor para não misturar produção com criação. No entanto, temos uma carta branca e um convite daqui. Temos só que preparar-nos para parar e  fazer uma ‘tour’ pelo país que inclua vir cá. Eu espero que o inverno faça isso acontecer. Logo, a resposta é: muito brevemente.

 

Fotografia © Vera Marmelo

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