Mira, un Lobo! transforma anos de dificuldade em obra-prima | electro-doméstico


O dia a dia torna-se difícil. As mais simples tarefas transformam-se em exercícios de autêntica ginástica financeira. Os pobres ficam mais pobres, os menos pobres também. Há fome, condições de trabalho precárias e uma sociedade partida. Aonde vamos parar? Haverá saída desta implacável crise económica? Talvez a solução seja individual, talvez cada um de nós terá que encontrar a solução para a sua própria crise.

Luís F. de Sousa veste a pele de lobo e dá o mote ao movimento. Do triste fado que nos assola, Mira, un Lobo! chega com “Heart Beats Slow” – um álbum verdadeiramente transcendente. Um álbum que nos consegue transportar para um mundo de inquietudes e incertezas, para um mundo onde só o hoje é certo. Por entre sons sintetizados reina uma tensão arrepiante, num trabalho que transforma anos de dificuldades numa obra-prima que perdurará até ao final dos tempos.

Antes de Mira, un Lobo! há MAU. “Heart Beats Slow” é um caminho isolado ou será a continuidade do trabalho que, infelizmente, viu o seu fim anunciado?

Não sei se essa associação é assim tão evidente, mas uma coisa é certa, o compositor é o mesmo (risos). Em MAU, exceptuando algumas parcerias em algumas letras, era também eu o único compositor e autor, logo, é natural que a essência de quem cria transpareça em ambos os projectos. Contudo, parece-me que ambos assumem caminhos distintos. Mira, un Lobo! surge porque as minhas mais recentes composições já não se enquadravam com o universo sonoro de MAU. Representa um amadurecimento criativo e reflecte um período em que me pude dedicar a tempo inteiro à música, coisa que nunca fiz no passado com a minha anterior banda. Julgo que isso se sente no novo disco a solo.

A crise económica e social dá o mote para “Heart Beats Slow”. É um “sufoco”, um constante “aguentar-se”? Como vês a situação do país e como é que traduzes isso em música? Foi um álbum muito planeado e projectado com um fim específico, ou foi uma inspiração que guiou a criação?

Começando pela última pergunta, tudo o que faço criativamente é fruto de pura inspiração abstrata. Raramente existe um propósito, um conceito. As coisas não me saem assim. É sempre tudo por instinto. Uma necessidade quase primária, irreflectida, de criar melodias. Só depois tento emprestar alguma razão às músicas que componho.

O disco reflete esse “sufoco”, esse “desespero”, pura e simplesmente porque era isso que sentia nesse momento e foi isso que passou inevitavelmente para as músicas. Estava desempregado, com uma criança pequena em casa, com contas para pagar. À minha volta a realidade também era essa, de aperto. Não que fosse de necessidade extrema, não. Mas de aperto, de falta de esperança, de ansiedade permanente, de frustração e inevitavelmente de depressão. Não foi preciso obrigar-me a reflectir sobre isso ou a idealizar conceitos sobre as contrariedades do país…elas apareciam nas canções que ia criando, quase sem querer. Mas não só dessa forma negativa. Havia sempre uma frequência forte de fé no futuro. De acreditar que as coisas iam correr melhor. A música foi o meu antidepressivo, de certa forma. Ao mesmo tempo que servia de refugio aos meus problemas, também servia de empurrão para a frente, de alento, de prova que era capaz o suficiente de fazer algo bonito e competente. Depois, à medida que ia mostrando essa criação a desconhecidos de todo o mundo, a surpreendente resposta positiva foi o maior de todos os estímulos. Fez-me recuperar a confiança e esse é o motor fundamental para refazeres a tua vida.

No teu caso pode dizer-se então que a crise também teve um lado bom? Há sempre algo a tirar de uma situação menos boa?

Sem dúvida. Se não fosse esse despedimento, se não fosse o fracasso do investimento que fiz numa pequena produtora que fundei a seguir, não teria estado em casa, não teria tido tempo para me dedicar por inteiro à minha verdadeira vocação, a música. Ainda que não me pagasse as contas, pude criar, experimentar, errar, corrigir e aprimorar um disco com tempo pela primeira vez na minha vida. Além dos benefícios emocionais que isso me trouxe, como disse anteriormente, acabou por se traduzir numa obra, num produto acabado. Não foi tempo perdido. Fiz um disco, consegui a atenção de alguns blogs internacionais importantes, consegui a atenção de algumas editoras lá de fora, consegui um contrato discográfico na Alemanha, consegui que o meu disco esteja à venda no mundo inteiro, que tenha de usar o tradutor do Google para traduzir dezenas de criticas em línguas que não percebo, que as minhas músicas passem em vários países, que as ouça numa das maiores rádios espanholas, que ouça o meu nome numa das rádios da BBC, enfim, quase um sonho tornado realidade. Temos de aproveitar todas as oportunidades que a vida nos dá, mesmo quando parecem não existir. Teria sido tão fácil cair no erro de me refugiar debaixo dos lençóis à espera que os problemas passassem… Foi uma sorte ter este vício incontrolável, este apoio constante, esta necessidade que nem a depressão adormece, de fazer música.

E neste cenário de crise existem demasiados lobos em pele de cordeiro?

A crise só os expõe com maior facilidade, na realidade. Só os torna mais evidentes. Ajuda a separar o trigo do joio. Mas também acontece o contrário. A bondade das pessoas, as demonstrações de amor, manifestam-se de forma muito mais clara quando estamos tristes. A tristeza rouba-nos o filtro. Damos muito mais valor ao que temos, às pessoas que temos e que nos fazem bem.

O álbum termina ironicamente com a faixa “Introduction”. “Heart Beats Slow” é uma introdução para o que ainda pode vir a ser Mira, un Lobo! ?

Não sei o que será do “Lobo”, mas sei o que os temas me dizem e o que espelham. O disco é um diário sonoro. Conta esse momento na minha vida. Retrata esse período complicado que começa difícil, que se vai alimentando de esperança, que se resolve e que abre a porta a um futuro que se avizinhava (e veio a confirmar-se) melhor. Daí acabar com uma introdução. Uma porta aberta para o que de melhor está por vir. Não necessariamente na música, mas na minha vida por inteiro.

Como é que está a tua agenda de concertos?

Na minha cabeça, durante muito tempo, até mesmo quando já estava a promover o disco, a ideia era que Mira, un Lobo! seria só um projecto de estúdio. Não tinha vontade, nem sentia a necessidade de o transportar para concerto. Mas as coisas mudam. O facto de estar a passar com alguma frequência na Radio 3 em Espanha, mais concretamente num programa incrível de culto chamado Siglo 21, fez com que começasse a ter alguma atenção por parte dos ouvintes espanhóis e de alguns promotores de espectáculos. Um pouco por impulso, e antes de ter feito um único ensaio de banda, aceitei o convite para tocar num festival de música em Bilbao em Novembro. Ao abrir esta porta já não há como a fechar. Os ensaios começam no inicio de Julho e estarei na estrada seguramente depois do Verão. Onde? Logo se vê.

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