Um concerto simples de um homem verdadeiro


“Ó que ilha tão formosa / Pisei ao sair do batel / Dei-lhe então nome de santo / Em dia de São Miguel”. Os versos de Carlos Tê, cantados ‘a capella’, invocando a descoberta das ilhas dos Açores, são o cumprimento de boas-vindas de Miguel Araújo, que por uma noite transformou o Teatro Micaelense na sua sala-de-estar.

A caixa da guitarra aberta num canto do palco e meia dúzia de focos a fazer de candeeiros criam um ambiente acolhedor. Um lusco-fusco com luz amarela, apenas, e estática durante toda a noite. Miguel Araújo, sozinho em palco, salta de instrumento em instrumento – entre a guitarra elétrica, a guitarra acústica, o ukulele e o piano –, vai cantando a história das personagens que habitam os seus álbuns – o José, a Lurdes, a Dona Laura, o Capitão Fantástico, e muitas outras sem nome – e faz conversa com a naturalidade de quem recebe os amigos em casa para uma noite de copos e cantigas.

O espetáculo, que reproduz o conceito intimista que o músico experimentou num concerto no Luxemburgo, chama-se “Casca de Noz”, e além de estar a esgotar salas por todo o país – algo que não aconteceu em Ponta Delgada – recebeu rasgados elogios de outros artistas, como Rui Veloso: “Original e único. Não só em termos do que já vi em Portugal, mas em toda a minha vida”. Como? Com talento, bom humor, e atenção aos pormenores, como a projeção, em tempo real das letras de todas as canções. O que, não só aumenta a profundidade da canção, porque nos coloca dentro dela, mas também convida à participação ativa, por mais murmurada que seja.

Foi também pela projeção das letras que, à terceira canção, se ouviu a primeira gargalhada da noite: quando a tela, fiel à letra registada na Sociedade Portuguesa de Autores, mostrava “O Benfica voltou a perder”, Miguel Araújo, por manifesta incoerência da letra com a realidade atual, optou por cantar apenas “o Benfica… mmmm mmmm”.

Além da letra das canções, o pano de fundo do palco mostrava também projeções de vídeo, ora com ilustrações alusivas à música em questão, ora com pormenores em tempo real da execução ao piano. E outro dos toques subtis, mas geniais, veio daí, quando, a meio de “Reader’s Digest”, de um momento para o outro, (aquilo que parecia ser) a sombra de Miguel Araújo põe-se em pé e começa a dançar efusivamente, apesar de o músico continuar sentado, a destilar um solo de guitarra.

Não houve lugar para “Os Maridos das Outras”, não se provou o “Fizz de Limão”, e também não se avistaram “os aviões a levantar voo”. Miguel Araújo passou por algumas das canções mais alternativas do seu repertório, e tocou também alguns do temas que tem escrito para outros artistas, como António Zambujo (“Catavento da Sé”), Ana Moura (“E tu Gostavas de Mim”) ou Azeitonas (“Pessoas”), mostrando, mais uma vez que é um dos grandes compositores da música portuguesa.

2012 foi o ano de estreia de Miguel Araújo a solo, e um dos seus primeiros concertos nesta condição foi precisamente no Teatro Micaelense. Na altura, o músico subia a palco com uma banda. Mas desta vez, sete anos depois, está sozinho em palco. “A vantagem de estar sozinho é que não tem que haver um alinhamento, por isso se houver alguma música que queiram ouvir é só berrar”. “Laurinha!”, ouve-se de imediato na plateia. “Pode ser”, responde Miguel Araújo já a dar o primeiro acorde na guitarra.

Já a meio de “Dona Laura”, enquanto ‘aguenta’ o mesmo acorde com que começara a música, Miguel Araújo tem mais uma história para partilhar.

“Quando vim cá a primeira vez, em setembro de 2012, o meu filho mais velho, que tinha três meses, ficou a dormir no camarim. Hoje está com sete anos e estava muito contente porque ia ver o concerto. Mas está a dormir no camarim”.

É isto que torna Miguel Araújo especial. É ele que está ali em palco. Não é uma personagem que se transforma com as luzes da ribalta, nem é um produto trabalhado só para agradar uma geração ou a nicho, nem é um ser distante e intocável. É um homem verdadeiro, que também tem um talento enorme.

Sem euforias, e com alguma timidez, mas com visível carinho e interesse, o público sentiu proximidade.

Miguel, volta quando quiseres! Afinal, o teu filho ainda te quer ver a tocar no Teatro Micaelense.

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Foto: Fernando Resendes/TM

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